Investigação de paternidade e petição de herança na sucessão internacional: uma análise crítica da jurisdição brasileira
- Patricia Novais Calmon
- 30 de abr.
- 5 min de leitura
Patricia Novais Calmon
Advogada OAB-ES, OAB-SP, OAB-DF. Mestre. Professora. Autora de diversos livros e artigos jurídicos. Presidente da Comissão do Idoso do IBDFAM-ES

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no REsp n. 2.030.897/DF, traz à tona importantes questões relacionadas aos limites da jurisdição brasileira em ações de investigação de paternidade ajuizadas por estrangeiros não domiciliados no Brasil. O caso analisado, envolvendo pedido de reconhecimento póstumo de paternidade cumulado com petição de herança, culminou com o afastamento da jurisdição brasileira para apreciar o vínculo filial, por entender-se que o autor, estrangeiro com domicílio temporário no Brasil, não comprovou sua efetiva residência ou ânimo definitivo de permanência no território nacional.
Esta decisão suscita reflexão sobre a adequação dos critérios tradicionais de fixação de competência internacional em matéria de estatuto pessoal diante da crescente mobilidade transnacional. A relevância da discussão amplia-se quando consideramos que o reconhecimento do vínculo de paternidade constitui questão prejudicial ao direito sucessório, cuja competência é inequivocamente da autoridade judiciária brasileira quando o falecido era domiciliado no Brasil e os bens da herança aqui se encontram.
De acordo com o entendimento do STJ, o autor da ação não demonstrou ter fixado residência em território brasileiro nem ter a intenção de aqui residir em caráter definitivo, apresentando apenas um comprovante de residência referente a uma fatura de cartão de crédito que sequer era de sua titularidade. O Tribunal da Cidadania afirmou não haver elementos nos autos demonstrando seu propósito de permanecer no local indicado como residência, convertendo-o em centro de suas atividades ou relações jurídicas, nem documentação sobre pedido de residência legal no Brasil, como visto temporário ou autorização de residência.
Com base nesses elementos fáticos, o STJ concluiu que o pedido de investigação de paternidade feito por estrangeiro não domiciliado no Brasil encontra-se fora dos limites da jurisdição nacional. Contudo, reconheceu que, tratando-se de falecido domiciliado no Brasil, compete exclusivamente à autoridade judiciária brasileira, em matéria de sucessão hereditária, proceder à partilha de bens aqui situados, conforme art. 23, II, do CPC/2015, c/c o art. 10 da LINDB.
A decisão reconheceu também que a cumulação sucessiva de pedidos pode implicar prejudicialidade, sendo o reconhecimento do direito de herança, em tese, dependente da prova da filiação. Entretanto, mesmo diante da ausência de jurisdição brasileira sobre o pedido de investigação de paternidade, o tribunal entendeu ser possível o processamento e julgamento do pleito de petição de herança pela autoridade judiciária nacional, discutindo-se, na causa de pedir, a efetiva paternidade do falecido e a violação do direito hereditário.
Nesse contexto, discutir a formação do vínculo de paternidade no Brasil quando o inventário tramita em território nacional não representa mero preciosismo técnico-jurídico, mas questão de ordem prática com implicações diretas no acesso à justiça e na economia processual. A fragmentação das competências jurisdicionais, exigindo que o suposto filho obtenha primeiro o reconhecimento da paternidade em seu país de origem para posteriormente pleitear direitos sucessórios no Brasil, cria obstáculos processuais potencialmente insuperáveis para o exercício de direitos fundamentais, como o reconhecimento da ascendência biológica e o direito à herança.
É importante destacar que não existe, no caso em análise, qualquer incidência de causa de jurisdição exclusiva sobre o tema, sendo questionável a restrição da jurisdição brasileira. A decisão pode representar uma violação ao direito de acesso transnacional à justiça, ignorando que as hipóteses de jurisdição concorrente ultrapassam a mera questão do domicílio do autor.
Curioso que o próprio artigo 21 do CPC determina que a jurisdição internacional concorrente poderá existir no caso de domicílio do demandado, não do demandante (frisa-se: o STJ vetou o acesso à justiça brasileira em razão da ausência de domicílio do autor). Como o autor da herança faleceu, os seus herdeiros é que seriam demandados. Essa interpretação reforça ainda mais a competência da jurisdição brasileira no caso em análise, pois os herdeiros, na qualidade de demandados, estariam domiciliados no Brasil.
A razoabilidade da jurisdição brasileira é clara em uma ação de investigação de paternidade cumulada com ação de petição, especialmente considerando que o resultado prático da decisão seria a necessidade de um reconhecimento posterior de sentença estrangeira para efeitos sucessórios no Brasil, gerando desnecessária duplicidade de procedimentos judiciais.
A decisão do STJ, ao fragmentar a jurisdição para conhecimento de questões intrinsecamente relacionadas, acaba por criar barreiras ao acesso à justiça transnacional. O suposto filho, impossibilitado de obter o reconhecimento da paternidade no Brasil, precisaria recorrer à jurisdição de seu país de origem para, posteriormente, solicitar a homologação dessa decisão estrangeira no Brasil e, só então, pleitear seus direitos sucessórios.
Esse caminho processual tortuoso representa um obstáculo significativo ao exercício de direitos fundamentais, especialmente considerando que o reconhecimento da paternidade, como questão de estado da pessoa, representa direito fundamental. Ademais, o direito à herança possui proteção constitucional no ordenamento jurídico brasileiro. Não bastasse isso, a economia processual é princípio basilar do direito processual contemporâneo, e o acesso à justiça, inclusive em sua dimensão transnacional, constitui garantia essencial do Estado Democrático de Direito.
Por ser assim, conclui-se que a decisão proferida pelo STJ revela a necessidade de repensar os critérios tradicionais de fixação de jurisdição internacional em casos envolvendo reconhecimento de paternidade e direitos sucessórios. A interpretação restritiva adotada pela Corte Superior, ao exigir o domicílio do autor no Brasil como requisito para o processamento da ação de investigação de paternidade, contraria não apenas a lógica do sistema processual (que privilegia o domicílio do réu), mas também princípios fundamentais como o acesso à justiça e a economia processual.
Em um contexto de crescente mobilidade transnacional e complexificação das relações familiares, a jurisdição internacional deve ser interpretada de forma a facilitar, e não obstruir, o exercício de direitos fundamentais. A abordagem fragmentada adotada pelo STJ, separando questões intrinsecamente relacionadas (reconhecimento de paternidade e petição de herança), cria obstáculos desnecessários que podem, na prática, inviabilizar o acesso efetivo à justiça por parte de estrangeiros com legítimos vínculos sucessórios no Brasil.
A aplicação mais flexível e teleológica dos critérios de fixação de jurisdição internacional permitiria o processamento integral de demandas como a analisada, atendendo simultaneamente aos princípios da economia processual, do acesso à justiça e da efetividade da tutela jurisdicional, sem comprometer a soberania nacional ou a ordem pública brasileira.
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